Ele saiu da prisão há pouco tempo, assinando um papel em como não falaria à imprensa. Sem nomes, sem caras, é o acordo. Sete meses em detenção administrativa no sul da Cisjordânia, sem acusação, por feitio da lei militar israelita, tiraram-lhe mais de 15 quilos e a forma do rosto de 60 anos. Tem a cara de outro homem, uma década mais velho.
Nos tribunais militares israelitas que governam sobre a Cisjordânia e Jerusalém Oriental, só o exército julga os palestinianos. Detém e mantém detidos, decide sem acusação, defesa ou julgamento de facto. Não prevê qualquer contraponto à sua vontade. “Ameaça à segurança” é designação bastante para meses ou anos de encarceramento, cuja entrada é tão não justificada como a saída. Prenderam-no mais de uma dezena de vezes desde 1988, quando atirava pedras e ajudava a cortar estradas durante a Primeira Intifada – mas nunca nada foi como agora.
Ele tenta a resistência popular não-violenta. Organiza manifestações. Usa das palavras. Acredita, ainda, numa possibilidade de paz quando desmanteladas todas as formas de “colonização da terra e da mentalidade”.
“A Europa tem sido hábil a enganar-nos com uma ideia de paz fictícia. Dá-nos uma autoestrada com um checkpoint quando o que nós precisávamos era de uma estrada estreitinha sem checkpoint nenhum. Quer tornar a ocupação mais cómoda, mas, enquanto ela durar, a nossa vida nunca será fácil. A vida é dignidade e liberdade – sem isso, nunca poderemos falar de paz.”
Depois de 7 de outubro, a prisão é diferente. “Mostra a verdadeira cara do colonizador.” Em Gaza, como na Cisjordânia, não só escalou o número de prisioneiros, como os relatos de violência ultrapassam os precedentes. Em várias prisões, o exército assumiu o controlo. Um companheiro, preso desde 1986, ter-lhe-á dito que os últimos oito meses foram piores que os 38 anos anteriores. “É pior do que tudo o que li sobre as prisões sírias, jordanianas, egípcias, Guantánamo e Abu Ghraib. E não é uma reação, é uma estratégia.”
Descreve uma alimentação de 1700 calorias por dia. Duas fatias de pão de manhã com 50 gramas de labneh; um bocado de geleia a cada três dias. Três colheres de arroz por dia. A sopa é água com sal, diz. “As pessoas envelhecem da magreza.” É pior o tratamento dos prisioneiros de Gaza.
As rusgas generalizaram-se, a transferência de prisioneiros arbitrária, o isolamento do mundo exterior praticamente constante. Não há televisão, nem advogados, nem visitas, escreveu o Mondo Weiss em dezembro. Farouq Issa, de 30 anos, de perto de Ramallah, saiu da prisão em dezembro “com um fantasma de si próprio” e perspetiva de poucos dias de vida. Muazzaz Abayat, de 37 anos, de Belém, perguntou, aos primeiros momentos da liberdade em julho, se também ele já era um mártir.
São constantes os gritos e o gás lacrimogéneo ao mínimo movimento. As noites a dormir sobre o chão, sem mais nada, durante dois, três dias. “Ainda não é fácil falar”, diz ele. Há ainda muito que não diz e outro tanto perdido nos limites da língua inglesa. Custa-lhe pensar como antes. Refere-se e esquece-se facilmente. Culpa no ar rarefeito de uma cela atulhada de gente e uma única janela minúscula onde viveu tantos meses.
Fala antes da história de um amigo. Preso a norte de Jenin, descreveu-lhe como se tornaram frequentes as rusgas militares à cela com pouco mais de 20 metros quadrados que dividia com uma dezena e meia de prisioneiros. Eram retirados aos pares, de algemas dadas. Calhou, no final do ano passado, ficar algemado junto com um homem de uma aldeia próxima da sua. Um soldado pergunta-lhe porque se ri, o que esse homem recusa. E o soldado bate em ambos com um bastão. Incessantemente. Pára apenas quando o sangue já sai pelos ouvidos e pela boca do homem da aldeia próxima, algemado ao vizinho. “Ele disse-me que durante semanas, não conseguia falar, comer, ir à casa de banho, nada. Estava em choque. Agora, ele está melhor, mas não está normal.”
Normal. “Há muitas histórias que não consegues imaginar nem descrever. E há coisas que demoram muito tempo até as conseguirmos dizer.” A palavra “normal” é muitas vezes corrigida: “Queria dizer ‘habitual’, não ‘normal’.” É uma guerra pela narrativa.
“Mas com o que está a acontecer em Gaza, o que posso dizer?” Ele sente-se obrigado a enquadrar a medida da violência na Cisjordânia à dimensão do genocídio em Gaza. Porque ali a uns quilómetros se matam pessoas às dezenas de uma vez, há massacres de centenas, bombardeadas, soterradas, dadas de morder aos cães, outras mortas à fome ou à febre, crianças alvejadas com precisão de snipers, e jornalistas propositadamente atingidos. Porque ali a uns quilómetros há relatos de prisioneiros violados, um deles com um cabo de extintor.
O que dizer se na Cisjordânia foram mortos 589 palestinianos desde 7 de outubro – um menor a cada dois dias –, mas em Gaza poderão ser mais de 186 mil. “Aqui a guerra é silenciosa”, escrevia um homem no campo de refugiados de Dheisheh, em Belém, uma noite depois do exército entrar a lançar gás lacrimogêneo e disparar sobre carros e casas. “É um exercício de treino quase diário”, dizia outro no dia seguinte. Tão banal que em nenhum lado teve valor-notícia – nem nas páginas que diariamente publicam dezenas de vídeos da expressão da ocupação. ‘Habitual, não normal.'”
Life here is less than life, it is an approaching death, Mahmoud Darwish.
The charge has worn my body, from my toes to the top of my head, for I am a poet in prison, a poet in the land of art. I am accused of words, my pen the instrument. Ink – blood of the heart – bears witness and reads the charges. Listen, my destiny, my life, to what the judge said: A poem stands accused, my poem morphs into a crime. In the land of freedom, the artist’s fate is prison.
Excerto de “A Poet Behing Bars”, de Dareen Tatour, escrito na prisão de Jelemeh, a 2 de novembro de 2015, no dia em que foi acusada.
MARGARIDA DAVID CARDOSO, Fumaça